Diário

joão
3 min readAug 8, 2023

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Oito de agosto de dois mil e vinte três. Duas da manhã.

O tempo funciona de forma contrária ao desejo. Com cada vez mais idade, vem a verdade, e por um súbito respirar, ela novamente se torna indefinida. O que era concreto é fadado à ruína, esta agindo sempre de forma visceral e violenta. Resta-nos contemplar a destruição, de nossa idealização noviça da perfeição, de sonhos tão abrangentes e latentes em nossa essência. Ela se destrói, conforme a modernidade se torna nostalgia, a cidade fica cada vez mais cinzenta e pesada. Pulmões antes exauridos do cigarro barato agora retém o carbono pútrido das máquinas, o café mal passado, queimado, não tem mais gosto. Não nos dá a energia que precisamos para tentar vislumbrar o sol. Ele se perdeu, em um mero piscar de olhos.

É uma visão dolorosa da vida. O amargor que torna o salivar difícil, a áspera textura do mundo cada vez mais palpável. Uma lágrima que desce com complicações, blocos de concreto que estruturam a moral do que é belo e adequado. Não os derreta, permaneça estoico, impeça estes alicerces impessoais de ruir.

Torne-os frágeis apenas quando a Lua lhe contemplar. Dentro, envolto de paredes grossas, seja quem sua alma clama por ser. Mas esta, pulsando de humanidade e desejos, ainda existe?

Seu olhar me é familiar. Encontro-o toda vez em que tento desviar deste pensamento tão destrutivo que é a velha idade, a responsabilidade tomando forma a cada passo deste caminhar, tão acelerado pelo chão esburacado. Os alertas não me foram suficientes, as palavras não têm quaisquer peso perante o ato. Bonito é o toque, de seus dedos tão gordos, cobertos da pele rusga que lhe é característica. As palavras não moldam a linguagem, nem a tão impenetrável realidade. O axioma. Sons delicados, melodias tão melancólicas, em um breve estalar, se reconfiguram como mero e inquietante ruído. O lembrete da presença da ausência.

A chuva chega, impiedosa como sempre. Junto dela, uma brisa tranquila. Uma recordação. Mais um dia.

Peço perdão, minha senhora. Ela deixou de existir, a muito tempo. Ela se exauriu ao olhar por tantas vezes uma figura medonha, que lhe era refletida. Odiava o corpo, a quem sua mente se tornou receptáculo; odiava sua voz, o seu caminhar, seus braços finos, o rosto inchado e marcado pelas espinhas, a barriga tão flácida. A única coisa que ela não odiava era sua pele, irônico ou não, o exclusivo aspecto em que reconhecia sua singularidade— era um ser vivo, outros pares oculares lhe notavam por isso, muitas das vezes por motivos não tão agradáveis. Talvez sua feiura fosse também algo que gostasse, tão latente quanto ser notado era quer passar despercebido pela multidão. Se tornar um dentre tantos outros, um sentimento que se dissipa com o mero pensar. “Quero ser reconhecido”, ela pensava. Mas não iria. A matemática joga contra.”

“A probabilidade de bilhões o reconhecerem era ínfima — a sensação de ser desconhecida por alguém acometia até seu descanso. Perdoe-a, senhora. Ela era perturbada, um tornado de pensamentos, de desejos e palavras sem sentido. Ela não existe mais. E não planeja ressuscitar novamente para uma última dança. Perdoe-a, ela não irá te encontrar no final da estação.”

Duas e meia. Eu realmente preciso dormir.

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joão

Tous ceux quit manquent se réfugient dans la réalité