La vie: journal en trois fragments

joão
10 min readMar 10, 2024

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Sea Breeze”, Acrylic on Canvas, 20 x 20 cm, 2021. (Anne Magill)

Tal é a natureza da força. O poder que ela possui de transformar os homens em coisas é duplo, e se exerce no sentido de ambos os lados; petrifica diferentemente, mas igualmente, as almas dos que a sofrem e dos que a manejam. Esta propriedade atinge o mais alto grau no elo das armas, a partir do momento em que uma batalha se encaminha para uma decisão. As batalhas não são decididas entre os homens que calculam, trabalham, tomam uma resolução e a executam, mas entre homens despojados dessas faculdades transformados, caídos nas alas, ou da matéria inerte que é só passividade, ou das forças cegas que são apenas impulso.
Simone Weil

I, por Jean Oliver

Olhou-se no espelho toldado e contemplou finalmente o rosto descorado, enfraquecido.

Olheiras profundas, cinzentas. Como seus olhos, de olhar resignado ao chão, as irises nunca foram lhe característica garrida. Algumas espinhas, espalhadas, poucas delas a explodir para fora de sua pele enegrecida, frágil como nunca fora antes tampouco tão malograda de marcas, feridas que atravessam o não-sensível, mas que ainda sim se fazem presentes nas curvas precisas de sua face adulta; que por isso, nunca conheceu a ternura — nem a permitiu uma estância duradoura, qual os comuns caucasianos sempre foram agraciados. Um toque suave: o mero ressoar de uma delicadeza fina e suave, o deslizar sereno de um polegar não calejado — de fato, sensações as quais apenas permanecem no plano das ideias, no frutífero campo de imaginação de sua complexada mente. De olhos brilhosos, o reflexo de algo que despreza; lágrimas nunca concretizadas, que nunca desaguam. Indisposto, consigo mesmo, perante os outros. O amor, qual tanto elucubrou por suas passagens oníricas, é o que sempre foi, o que és desde sua concepção — a farsa máxima do homem.

As últimas moedas sacadas de teu bolso sujo saem empoeiradas. Com algumas manchas, ainda reconhecíveis, o vendedor não consegue conter um praguejo rápido. Sacou de sua bancada um maço de cigarro novo, fora do plástico — de detalhes avermelhados, o plástico transparente foi rasgado as pressas pelos dedos calejados, grossos, ásperos do maduro garoto. Um agradecimento em silêncio quando se pôs para fora do estabelecimento, levando o tabaco filtrado a boca, acendendo com um de seus fósforos. Sentiu alívio, finalmente. Não era um viciado (tinha plena consciência da possibilidade de ser, o que não lhe assustava nem afastava a oportunidade de viver sem o produto amargo e barato) mas o trago fez todo o peso de seus ombros cederem, a distensão de algo incomunicável, incognoscível.

A voz serena e adamada de um amor antigo rompeu com a tranquilidade imperfeita. O ecoar manso, distante, de um amor pretérito frente a maldade que tanto lhe intoxicou. Imaginou em estar sonhando acordado, como sempre fazia perante a sobriedade mundana — o rosto de maçãs delicadas, bochechas ao qual aprendeu amar deslizar o polegar. Por detrás do óculos, irises castanhas tais quais as do sofredor, que não contém o desgosto em ser acordado a realidade novamente. Por um esbarrão, desperta, piscando as pesadas pálpebras. Seu rosto molhado por finas gotas de água, tóxica, que caiam graciosamente do céu. Uma chuva torrencial, de verão, embora a brisa de um inverno ansioso lhe tomasse a carne fraca. O cigarro não se apagou, contudo. Quando o pôs na boca a tragar, realmente viu aquela face que tanto salvou suas noites mal dormidas. Vislumbrou seu sorriso perante a multidão, o corpo suave caminhando tranquilamente, sua risada elegante, o pigarro ao engasgar em sua própria felicidade reverberante. E por um instante, encheu-se de alegria, um tsunami de satisfação. Rápido como veio, foi, num piscar de olhos; quando o cigarro começou a queimar seu filtro, o jogou no chão de asfalto, pisoteando como sempre fazia. Reergueu o olhar, buscando-a, uma visão de mundo perfeito que havia se perdido.

Por pouco, condescendeu. Olhou em volta. Ainda tinha a cidade para si.

Colocou mais um cigarro entre os lábios e não demorou para acender-lhe outro. A cabeça se abaixa, o pulmão recebe de bom grado a fumaça do cigarro. Lábios entreabertos, um sorriso franzino, e as lagrimas de Deus agraciam a pele molhada perante a solitária, agora inundada metrópole urbana. O corpo enegrecido pelo casaco desbotado finalmente a andar, sendo mais um perante o montante. Uma sombra magra abraçada pela penumbra.

First Light”, Oil on Panel, 45 x 15 cm, 2007. (Anne Magill)

II, por Jean Oliver

“Pronto para ir à cidade, velho amigo?” Silêncio. O viajante se senta ao lado de seu velho amigo e conhecido. O evita olhar, tomando sua atenção ao mar da praia a qual se encontravam. De ondas perturbadas, que quebravam com a confusão e potência de almas perdidas, de vozes que não gritam nem clamam, mas que sangram a tormenta, que guincham um ganido único, um que apenas o viajante dava conta de atentar a seus sentidos. Tomou o seu olhar ao amigo, então — pouco expressivo, pouco ostensivo, em nada atribuiu uma malícia, intenção quaisquer. Prostou a continuar com o seu fitar fastio dirigindo sua mão até o braço da cadeira em que estava sentado, finalmente desvencilhando seu olhar do homem, contemplando a insuficiência da natureza ao qual estava tão familiarizado; a intervenção humana perante a beleza do tempo, a tentativa de uma concretização do corpo do ser e sua mobilidade — uma rua de pedras.

“Estive pronto desde sua primeira visita, companheiro.Silêncio. O homem na cadeira, amadeirada, de caráter frígido e frágil. O tempo lhe foi sinuoso, pouco temeroso — danava a ranger, a quebrar cada fibra que ainda lhe restava. Os ornamentos desapareceram; apenas lhe restavam os entalhes. Atentou-se a olhar para seu companheiro, mas não conseguia. Ele carregava consigo uma gama de minuciosidades as quais pertenciam a outros, muito mais significantes — pormenores que lhe excruciavam a alma.

Deixe-me só, pelo menos por alguns segundos. Preciso ver as estrelas.Praguejo em vão. Sabe-se disso mais do que qualquer outro. Olhou seu antigo amigo, companheiro único de noites frias como esta, chuvosas em sua extensividade: cruciante penumbra ao qual viu pela primeira vez, com um semblante enigmático — nada mudou desde então. A diferença, talvez a mais latente dentre as poucas que percebeu, fora a leveza ao qual ele movimentava seu rosto; um frescor ao qual nunca lhe foi perceptível. Sentiu os dedos frios aos quais sempre lhe foram familiares, de uma parentela quase sanguínea.

“Acha que ela está lá?”

Ela está? Silêncio. O entreolhar singelo e natural. Um que fala mais do que se consegue ouvir; aquilo que mostra mais do que se suporta revelar. O mais novo traga o fumo que está entre seus dedos. Gotas finas choram das nuvens pungentes, as mesmas que pintam a paisagem cinzenta. Aquele que inspira e expira com certo pesar então contempla o chão, uma terra arenosa que toma forma e contornos úmidos. Fecha os olhos, resguardando com cada vez mais viço algo que nunca irá ser confidenciado, um amargor que nem sua rouca voz consegue anunciar.

Merda de chuva.Em tom rabugento, sua voz rouca. Relembra de sua progênie, e suas semelhanças latentes, as quais sempre lhe foram rejeitadas — agora, o tempo, como Deus impiedoso e tempestuoso que era, instável como o clima, antes fosse moroso. O odioso homem ao qual compartilhava resquícios de sua identidade e aparência (esta, com muito mais semelhanças do que características destoantes de sua linhagem) fora apenas memória, amarga, sempre revivida em momentos inoportunos. Singular lágrima para tal fato, não importou. Se misturou com a chuva, concretizando sua insignificância ao encontrar o solo cada vez mais pantanoso.

Resta, então, a formalidade.

Então vamos.O homem então apressa-se a levantar seu corpo moribundo, coberto pelos agasalhos as quais sempre se fez coberto. Mãos nos bolsos, mirando encontrar o conforto de um fumo perdido. O encontrou — amassado, um pouco acinzentado. Tomou a colocar entre seus lábios, acendendo tal cigarro com dificuldade: suas mãos tremiam. O frio lhe tomava, perpassando a carne e penetrando-lhe os ossos já frágeis. O companheiro toma o arrojo de começar a caminhar, com certa lentidão — um pouco trôpego, deveras cuidadoso dado o estado do solo.

“A cidade está linda a essas horas.Um sorriso desponta, se desenha pelas feições já oxidadas. Amarelado, de dentes em perfeito estado. Um olhar quase tenro ao seu antigo companheiro, qual conhecia desde a infância de sua época juvenil. Incrivelmente, algumas poucas mudanças em seus traços faciais — a aparição esperada de rugas, além de um cansaço transparente no qual, tal qual no modo a que caminhava, de ombros abaixados; emanava uma indiferença — a tudo que vislumbrava. Diferente estava — percebia que o pesar no caminhar diminuiu, muito mais proveniente do ambiente ao qual se encontravam. Este antigo amigo retribuiu o sorriso, sempre frio, cristalino, ao mesmo tempo em que era tímido, enfeitiçador aos olhos mais carentes.

Imagino que tenha pendências lá.Risadas. Espontâneas, ao tempo em que são humanas e fantasmagóricas. O solo não é mais arenoso; agora, toma o aspecto de uma rua, formada por pedras. Randômicas em seus diversos formatos, proporcionando falhas ao caminhar.

“Não hoje. Não hoje…” Corpos que se interpõem — a chuva toma riscas ferozes, enquanto os dois homens de estirpe gastam seus últimos segundos juntos caminhando em direção às luzes bruxuleantes da cidade, silenciosa como nunca foi, quieta e pacífica como o mais novo sempre desejou. Se tornam semblantes, logo antes de serem abraçados pelos braços vastos da penumbra noturna — até suas vozes se dissiparem ao ar, e o único que possui uma alma encontrar seu destino tão quisto desde sua jovial infância.

O mar é tomado por uma prantina agressiva em sua última onda, que se quebra. A última antes de ser tomado pela calmaria.

Walk With Me For a While”, Charcoal and Pastel on Paper, 150 x 200 cm, 2007. (Anne Magill)

III, por João Hurtado

Por vezes e vezes, admito, volto aos meus vícios.

O prazer de estar — mesmo que fora de meu alcance — próximo do decesso, é prazeroso. O definhar de meus joviais pulmões, deixando-os fracos o suficiente ao ponto de a natureza apenas contemplar-me com a ruína (sonho frequentemente com minha morte — ora de formas mais pacíficas, ora turbulentas, todas sempre perante ao olhar sublime e impugnado de Morte) inevitável. Lamúria que imunda corrente sanguínea, que me toma em seus braços sempre em noites e madrugadas frias, de espaços limiares (os quais sempre me fiz confortável — casas destituídas de vida, corredores simétricos, espaços aos quais senti-me desafogado, justo quando o vazio se forma em sua mais completa forma) com seu silêncio vacilante — cortados pelos ventos sobrestantes, cortando os meus fracos ossos, dentes rangendo em busca de um calor: está sendo o ponto de afluência d’um processo de clivagem da alma e de meu corpo.

Veja: não me considero um ser humano bom. Por erros de meu passado e das lágrimas que fiz cair, da raiva animalesca que presenciei e causei, do olhar de desprezo qual me desmontou por inteiro, fiz por merecer esse gosto pela morte. Mas como toda alma ruim, o simples contemplar de tal me causa indigestão. Um alerta, uma pulsão de vida-morte que faz de meu corpo inapto de concretizar o que se dissolve. Ao parar no parapeito, me vejo. Alguns metros abaixo, de corpo estatelado e com um mar de sangue. Pescoço quebrado, ossos expostos. Uma multidão passa, e me vê. E ainda estou lá, sujando o chão cristalino do shopping, até seu remate, onde um faxineiro apenas dispensa o que me foi um dia meu corpo, secando o sangue escurecido até o antigo estado em que se encontrava. E mais um ciclo se inicia: transeuntes pisoteando onde horas atrás meu corpo desfalecido desapegou de sua alma.

E por um mero segundo, volto.

A agonia está não nas noites solitárias: elas sempre serão, sempre estarão, sempre acontecerão. Está no fato que o dia não se difere da noite: o sol me acompanha e este se faz meu único companheiro por todas as semanas, dias, horas e segundos. Um companheiro que apenas me observa, nada fala, nada grita. Está lá, e quando o olho, se dispersa com sua luz potente, me cegando por breves minutos.

São essas noites: das luzes sujas, dos barulhos cortantes de carros ansiosos, conversas escusas — essa noite cassavetiana de homens acompanhados de seus fracassos, impossibilitados de conferir seus anseios a quaisquer pares de olhos absortos, sofregados pelos gritos e pelo ressoar deles na metrópole urbana — são nessas noites que uma parte de minha alma anseia pelo amor. A completude que apenas outro me pode oferecer. A quem eu me deito, a outra, deseja que eu nunca chegue a admirar-la em sua plenitude. Pois amar é deixar a alma sangrar, de dentro pra fora. E presumo que eu não tenha mais vermelho cinza para tal. Nem ela, eu suponho. O dinheiro que se esvazia de meu bolso não fala (mas possui linguagem própria), não afunda o espírito em aflições levianas. Não me vale nada, mas a ela, de seu cósmos é a matéria.

Talvez fosse mais feliz assim.

A Passing Board”, Charcoal on Board, 92 x 67 cm, 2021. (Anne Magill)

“Imaginava ser mais inteligente. Integro, de fé inabalável. Que eu protegeria todos de outros, até deles mesmos. Ser Deus, ser anjo de aureola alva, juiz benfeito e júri decoroso. Tudo isso, relegado a mim, e minha existência de importância tremenda. Daí veio o tempo.”

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joão

Tous ceux quit manquent se réfugient dans la réalité