L’ocean: journal en trois fragments

joão
7 min readMay 19, 2024

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Hewn”, Oil on Painel, 60 x 69 cm, 2021. (Anne Magill)

The sea is always dying
And our dreams are always drifting
Diogo Serafim

I, por Jean Oliver

Tenho sonhado com a mesma pessoa todos os dias.

De início, são seus olhos. Que me fitam, do prelúdio ao arremate, sempre fixos em meu rosto, um que julgo imerecido do arrostar celeste. Compenetrado, curioso da mesma forma em que é malicioso em seu desejo impetuoso de me conhecer, de destrinchar cada raiz dos vinhedos espinhentos referentes a minha alma e memória. Pelo menos, assim a julgo, até a margem de minha interpretação, diminuta e limitada, como todo tolo que ama.

Ela passa, prestimosa, como o suspiro de um homem indisposto. Não me dirigiu a palavra, muito menos a moeda intransigente contemporânea — sua atenção, posta a um homem, que me é estranho, quem de nada sei. Apenas sua silhueta, seus movimentos, sua estatura, sua penumbra, o perfil receptor de toda minha apressurada observação.

Lembro-me deles acalorando o meu âmago. A escandescência se dissipando, num curso de abstração d’um alma que desperta, pouco a pouco, do sono aflitivo e das passagens eternas e lancinantes que minha consciência trafega todos os dias, sem qualquer prévia exortação. Pouco a pouco diluindo, derrubando o concreto que enclausura o puro, o libertando a lágrimas serenas. Singelas, cristalinas. Esfaceladas com seu tórrido polegar.

Vejo um sorriso. O que me faz sorrir de igual modo, mas logo dissipo qualquer afinidade com uma alacridade impessoal. Permaneço compenetrado na ideia de ignorar o motor que reverbera a batida pesada que salta de meu peito, tentar de alguma forma invalidar em igualdade plena o que sinto, o que vi antes de sentir, o que senti depois de ver. Virar o rosto para ver se a tortura d’um amor padecer não se atenue, dolorosa como já é. Dedos se entrelaçam. O polegar desliza com ternura. O homem leva a mão livre até o rosto desta que a ele sorri.

O amor é uma zona de guerra apaziguada.

Eu sorrio. Meus músculos faciais não estão acostumados com tal ato — dói a mera demonstração, manter algo por tanto tempo. Possuo uma ojeriza sobrenatural a minha risada, o modo como se distribui perante o ar — o vulgar eco estridente, remanescente de tipos indesejados. A reconstrução do que antes era ruína: minha risada se mescla com a dela. Doce a mim, imperfeita a razão: silenciosa, inexistente, tão pouco comparado a imensidão castanha envolvida por sua retina, a musa tenra, que me tranquiliza, acalenta este homem mal e febril.

Eu a ouço e vejo. Os vejo, desejo. De olhos fechados, distante, resguardado. As palavras covardes que guardo servem de algo — são o oxigênio que se transfigura, carbono do mais pesado tipo. Uma fumaça que entra e se recusa a sair. Apenas o suspiro de um dia frio, vapor álgido a um tipo frígido. Estou magro, o casaco serve como um desconfortável cobertor. Um pouco de conforto, eu minto a mim mesmo.

Me pergunto se mereço aquele sorriso. E como o lembrava, tamanhos detalhes bordados pela tela branca. Se, de alguma forma, superei o que meus sentidos não conseguiram obstruir minha memória de guardar. Esse aramado, que perfura e me extirpa a cada momento, talhou até a rústica imagem repulsiva que vos fala. A mão dela repousa em meu rosto e o seu polegar desliza sob minha bochecha, minha pele em erupção — a imagem não existe mais.

Alma e consciência. Plano, contraplano.

O meu já comum receptáculo de prazer queima meus lábios. Eu me volto a frente, olhar, mesmo que por breves instantes antes do chamado, o cenário contemporâneo que se dispõe a mim. Deuses adormecidos, apenas sombras, com suas espinhas extensas ao ponto de explodir. Apenas silhuetas foscas para os descrentes, divindades aos sonhadores entediados banhados pelo luar, e as poucas estrelas mal brilham no céu enegrecido. O que resta são os apêndices do cosmos imprevisível. As luzes da cidade são o que me resta, tão fracas no findar da noite…

Antes de ir, lembro-me de minhas palavras — proposição vital a sobrevivência da memória, esta que suprime o entrave infernal entre minha consciência e corpo de ser e objetos incompletos coexistindo perante um objetivo infeliz, e na medida em que é lancinante, é também, a frase que perfaz o paraíso.

“Você me faz feliz.” eu digo a ela.

E tudo se acaba. Não há ninguém na varanda. A calada, fúnebre noite de muitas luzes artificiais, as minhas noviças estrelas. Do alto da edificação, chapada pelo concreto bruto, eu contemplo as infinitas derivas, o fluxo corrente de vidas igualmente complicadas. Por um momento, eu me sinto divino, de tanta impotência que há em minha existência. Em minha mão, o maço vazio, um papel amassado.

“Viva.”

Grafia minha.

E que eu dance com ela em meus sonhos. No final, apenas terei a desolação de seu fim, e uma satisfação do recomeço. Mantenho ela apenas nesse mundo ideal, com um definido, agridoce e ácido remate. O amor comum.

The Letter II”, Acrylic on Board, 20 x 20 cm, 2009. (Anne Magill)

II, por Jean Oliver

E como tens levado a vida, Jean?

Queria tanto possuir uma resposta crível. Excluir minhas noites mal dormidas, dores constantes no meu peito, as meditações venenosas que inundam a consciência e se transfiguram nas enigmáticas figuras que fito perante a penumbra — com seus olhos dilatados, dentes cristalinos e igualmente afiados — sedentos por uma lágrima de desespero, de tristeza, uma singela amostra de minha fraqueza. Ela existe, mas é anémica.

Não há forças para demonstrá-la.

Eu olho para ti, e tudo o que consigo vislumbrar do teu olhar amadeirado, tranquilo como nunca guardei a mim — e suas mãos, delicadas e macias como sempre, talhadas numa rudeza impenetrável em minha memória tão oca, maculada. Daquele tempo, apenas lembro-me daquilo que desejei nunca carregar: o amor, o desamor, a violência e a perpétua solidão.

Bem.”

O café que desliza por minha garganta, amargo o suficiente para obter minha atenção e me impedir de colapsar. Expressão neutra, demasiada corriqueira e excêntrica aos transeuntes que me rodeiam — sorriem, gesticulando com certa frequência, riem na mesma intensidade em que falam, seus olhos parecem me carregar familiar tristeza, mas de alguma forma, eles apenas buscam sofrear em público sobre tal. Nunca a ponto de colapsar num desaguar natural, como não busco fazer naquele momento.

E quando te olho, não consigo pensar em nada menos que tristeza. Apatia. Tão distantes, opostos um do outro; eu te perdi pelo tear imprevisível do tempo, e por incompetência, minha covardia fez os meus sentimentos perderem a validade. Confessar meu amor por ti já não é mais necessidade, e temo que ele tenha se perdido conforme os dias foram passando.

Eu perdi o elo que me conectava com a realidade — a mão que me puxava para acordar em dias turbulentos, que zelou pela minha felicidade. Seu beijo ainda está gravado, e como eu sinto saudade do teu abraço, da tenra dança que pus a ter com você em meu aniversário. O outono naquele tempo era sempre convidativo, e só quando você partiu o ar tornou-se seco: os dias passam devagar, o sol queima com brutalidade a minha pele, o frio esfacela meus ossos extenuados. Como eu sinto saudade do único amor que não me abandonou, que foi duro quando precisou, que foi ameno quando me necessitou. Eu duvidei que sentiria tanta falta — mas agora, cada vez que eu olho pro céu, não me vem o desespero de não te ter mais comigo. Eu imagino você tranquila, descansando. Como eu falava sempre para você fazer. Me dói, mas é o que tenho para me manter vivo.

Sua mão em meu rosto me é familiar. O dedo desliza, tal qual da forma que eu me lembrava — de cima para baixo, com cautela. A lágrima que passeia por meu rosto fragmenta-se, deixa seus resquícios. Nada me resta mais além de abaixar o olhar, tomar o último gole do café e devorar com certa timidez a última torrada do prato.

Eu vou ficar bem.”

Me falta forças para confessar o amor. Mas temo que ele já tomou outros rumos.

Le Mépris, por João Hurtado

Deixe-me só, penumbra. O tempo irá envenenar meus sentidos, minha voz rouca se perderá no ecoar bruto até lacerar minha alma. Já fostes minha amante de companhias tenras por incontáveis invernos. Invernos de chuvas penosas, gotas grossas e pesadas, ventos rápidos e irritadiços, álgidos perante o sol nascente.

Fique, penumbra. Clamo por ti, na mesma intensidade em que te renego — indeciso fui, continuo sendo, e temo que irei. A imagem, de olhar intratável, carregada por olhos empedernidos me foi tortura, dá mais cruel entre os homens ordinários: o desprezo inesgotável, uma marca pútrida inolente, inflamam-me ao limite de meu âmago. Por entre o véu rústico e das limítrofes proposições que ecoam pelo vento silencioso, há apenas o resquício d’uma flor morta, sem cor.

As pétalas decaem, pela graça do ar e pelo desfortúnio do tempo e sua finitude. Assim como as lágrimas, e tal como a chuva, essa angústia, o desprezo para além do corpóreo, temo ser contínuo. Ainda sim, suplico por um término. Há de acabar.

Que acabe.

Sea Mist”, Acrylic on Paper Laid on Board, 20 x 21.5 cm, 2019. (Anne Magill)

Misericordioso como és, vi afetos se desmancharem, palavras morrerem com o vento. Talvez seja isso que eu deva fazer. Proferir minhas condolências, deixar o amor morrer. Assim, então, voltar a ter, poder perceber e sentir, mesmo que por pouco tempo, algo semelhante ao que nunca terei.

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joão

Tous ceux quit manquent se réfugient dans la réalité